Dirigido por Walter Salles, o longa brasileiro Ainda Estou Aqui tem colecionado prêmios desde o Globo de Ouro de melhor atriz para a protagonista Fernanda Torres ao Oscar de melhor filme internacional. Embora, tenha ganhado notoriedade devido suas indicações e posteriormente conquistas, o que chama a atenção é o conjunto de fatores que constituem a película como uma obra primorosa.
Baseado no livro de mesmo nome do escritor brasileiro Marcelo Rubens Paiva, a história gira em torno da família de Marcelo, mais especificamente, da mãe dele, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva.
Após o marido, Rubens Paiva, ser levado por policiais e sumir, Eunice é obrigada a mudar toda a dinâmica familiar para poder investigar e encontrar o marido, enquanto tenta levar a vida e a de seus filhos de forma que eles não entendam a gravidade da situação.
O filme mostra o cotidiano de uma família marcada por um período sombrio e doloroso da história do Brasil. No primeiro momento, vemos o dia a dia enquanto ainda são uma família pacata como qualquer outra, uma casa cheia de crianças que se diverte na praia, brinca com o cachorro, come suflê, dança em volta da vitrola ouvindo música brasileira. Depois, presenciamos a angústia de não ter as respostas necessárias "onde está Rubens?", "quando ele volta?", "ainda está vivo?". E por fim, a certidão de óbito de Rubens conquistada 25 anos após a sua morte.
É impossível não se incomodar com o filme, em muitas cenas o espectador se sente dentro da tela, ao lado de Eunice e dos filhos, tentando achar as respostas ou sufocando com a protagonista em uma cela escura e vazia, onde ela precisa ter forças para aguentar, não por ela, mas pelos filhos e pelo marido.
Eunice não desistiu, ela lutou, ela guardou a dor para que seus filhos não sofressem, mesmo nos piores momentos, ela estava de pé, ela foi resistência, foi audaz. O momento em que ela conserta a boneca, ou a luta contra as lágrimas na sorveteria, ou o momento em que tiram a foto para a revista, mostram a fortaleza que precisou ser para que seus filhos não vivessem com medo ou na tristeza, mesmo ela própria estando devastada e assustada. O momento em que os homens entram em sua casa e levam seu marido a mostram tremendo o lábio e com a voz trêmula, sim, ela tinha muito medo, ela sabia que algo grave estava acontecendo, mas ela não se permitiu desistir, se mudou para São Paulo com os filhos e recomeçou: estudou, fez direito, lutou pelos indígenas e só parou quando foi tomada pelo Alzheimer.
Ela mudou a rota, os planos e firmou uma família unida, que mesmo em seus últimos dias, continuavam ao seu lado, um corpo que se transformou com o Alzheimer, mas que viveu cercada de muito amor.
Fernanda Torres se entregou completamente a sua caracterização como Eunice, em nada lembra antigas personagens suas como Vani ou Fátima (personagens marcantes na TV, respectivamente em Os Normais e Tapas & Beijos), tampouco Maria (personagem do longa O Que É Isso, Companheiro?, filme brasileiro que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1998), as cenas em que precisa chorar ou segurar as lágrimas ou até mesmo nas cenas em que precisa sorrir, é tudo feito com naturalidade. Algo interessante é quando ela justifica porque está feliz em receber a certidão de óbito do marido, a forma em que ela se expressa é algo que toda pessoa faria ali, mas vem de dentro, é Eunice ali, não é Fernanda, ela não interpreta, ela vive.
Não podemos esquecer de Selton Mello, que coleciona sucessos no cinema (O Auto da Compadecida e O Palhaço) e na TV. Seu Rubens Paiva estava no tom certo e não podemos negar que sua última cena (sorrindo para Eunice antes de entrar no carro) é dolorosa, comovente, mas apaixonante, ao mesmo tempo.
E por falar no elenco, os atores que interpretaram os filhos de Eunice estavam muito bem representados, desde os menores aos mais velhos, em suas diferentes fases. A reação de cada um diante dos fatos ditos e não ditos, a percepção deles diante da "viagem" do pai, da morte do cachorro e da mudança de estado falaram muito e comoveram o espectador, assim como a angústia e medo da filha ao ouvir da mãe que aqueles homens lá embaixo haviam levado o pai.
O destaque final fica com a incrível Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice em seus últimos anos de vida. Sem dizer uma palavra, Montenegro entrega emoção e sinceridade em cada segundo de tela. A semelhança entre Montenegro e Torres levou os estrangeiros a acreditarem que era apenas maquiagem de envelhecimento em Fernanda Torres, o que não dá para julgar. Embora, Fernanda Montenegro tenha uma carreira consolidada e já tenha sido indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro por Central do Brasil (ganhando o segundo prêmio), não dá para negar que mãe e filha na vida real estão cada vez mais parecidas e, nossa dama do teatro, pegou direitinho os trejeitos que a filha usou para compor Eunice.
A trilha sonora, fotografia e figurino são uma delícia a parte, podemos nos deliciar com as músicas dos anos 70 como Take Me Back To Piauí” de Juca Chaves, em um dos mais belos momentos da família Paiva; e, “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” de Erasmo Carlos. Podemos também conhecer ou relembrar o Rio na mesma década em questão e conhecer mais sobre o visual da época.
No entanto, é uma luta que nunca terminou, afinal de contas, ainda vivemos em uma época de negacionismo de muitos que se recusam a aceitar a existência de uma ditadura no Brasil. Enquanto muitos assumem o que fizeram, já que vemos nos créditos do filme que pessoas confirmaram que torturaram e mataram Rubens Paiva, uma parcela da geração de 90 e 2000 afirma que nunca vivemos ditadura no país. do mesmo modo, ainda convivemos com corpos nunca encontrados e famílias que foram arrancadas de seus entes queridos.
Revisitar o passado é necessário para aprender sobre história, mas também para não repetir os mesmos erros e crimes. Ainda Estou Aqui não é apenas um filme, é a história real da família Paiva, é um pedaço da história do Brasil que não pode ser esquecida e nem deve voltar.
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